Por Fábio Daura
Para entender como ambientes naturais funcionam ecologicamente é necessário tempo, muito tempo em alguns casos. A ecologia é complexa, e esta complexidade exige de curiosos cientistas muita paciência, perseverança e criatividade para responder um conjunto de pequenas perguntas que juntas, vão montar um grande quebra-cabeças. Ou seja, ao entender o funcionamento de pequenas partes de um ecossistema natural, temos a chance de colocá-las juntas para então entender o ecossistema como um todo. A partir daí podemos tomar as decisões corretas para um uso adequado dos recursos e serviços disponibilizados gratuitamente pela natureza, protegendo-a. Para isso, precisamos de tempo e recursos financeiros.
Felizmente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), desde 1999, instituiu o programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD), com uma rede atual de 42 sítios em diversos ecossistemas do Brasil. Nestes sítios, são desenvolvidos estudos ecológicos diversos que respondem perguntas que exigem longas séries de coleta de dados e esforços de pesquisa. Em 2021, um novo sítio foi implementado, o nosso PELD SELA, ou Programa Ecológico de Longa Duração do Sistema Estuarino de Laguna e adjacências.
Por mais que seja um novo PELD, inúmeras pesquisas ecológicas estão em desenvolvimento no Sistema Estuarino de Laguna ao longo últimas décadas, caracterizando, em alguns casos, esforços de longa duração. No entanto, muitos desses esforços carecem de integração. Ou seja, diferentes grupos de pesquisa buscando responder diferentes perguntas para componentes específicos do ecossistema. Assim, além de aumentar um esforço temporal das pesquisas em andamento, a primeira virtude deste novo PELD será colocar essas pesquisas e pesquisadores para conversar. Essa integração de esforços será fundamental para uma organização das perguntas que precisam ser respondidas de forma prioritária para a conservação do ecossistema. Esta integração de esforços também é a chave para um melhor entendimento do ecossistema como um todo.
Mas além de aumentar o tempo dos estudos ecológicos e a integração entre eles, nosso PELD tem uma característica virtuosa adicional. Seus objetivos seguem uma lógica organizada que ao ser executada naturalmente possibilitará que a resposta a uma pergunta seja uma informação necessária para responder a segunda pergunta e assim por diante. Isso significa que nossos objetivos estão entrelaçados, se complementando, do primeiro ao último, sendo o último, nosso resultado final, nossa cereja do bolo, e cada objetivo anterior, uma parte fundamental do entendimento do todo.
Vamos exemplificar. O Sistema Estuarino de Laguna tem muitos componentes ecológicos de interesse, alguns extremamente importantes para a comunidade local, em especial para a comunidade pesqueira. Mas entendemos que um dos elementos chave para este sistema é a ocorrência da população de botos-da-tainha e em especial a interação cooperativa que alguns botos realizam em parceria com pescadores artesanais de tarrafa. Nos últimos anos estudamos incansavelmente esta interação entre botos e pescadores, monitoramos a população de botos e a pesca artesanal. Agora, no contexto do PELD, vamos usar nossos dados pretéritos e novos dados coletados para descrever no detalhe os mecanismos de funcionamento desta interação e quais os benefícios para botos e pescadores (objetivo 1). Também vamos continuar nosso monitoramento da população de botos (objetivo 2) para avaliar se a população está aumentando ou diminuindo, e vamos intensificar nosso monitoramento da pesca artesanal (objetivo 3) para entender sua dinâmica no tempo e no espaço. Teremos alguns objetivos teóricos (4 e 5), que vão utilizar as informações dos objetivos 1, 2 e 3, para prever o que ocorrerá com a população de botos e com a pesca no futuro se as condições atuais se manterem ou piorarem (aumento da poluição, tráfego de embarcação, emalhamento acidental).
Com os resultados dos objetivos 4 e 5, que vão prever o que ocorrerá com a pesca e com os botos, combinado à um esforço monumental de levantamento de dados sobre outras espécies que ocorrem no Sistema Estuarino de Laguna, tentaremos gerar um modelo ecossistêmico (objetivo 6) e um modelo bioeconômico (objetivo 8). Estes modelos irão, respectivamente, nos ajudar a entender todas as relações ecológicas entre as espécies do sistema e quais as consequências econômicas para a atividade pesqueira das variações no sistema. Ilustrando possíveis perguntas que queremos responder: se a população de botos diminuir, o que vai ocorrer com a pesca e o que vai ocorrer com as outras espécies do sistema? se a dinâmica da pesca e a abundância de algumas espécies mudarem, o que vai ocorrer com os rendimentos econômicos da pesca.
Enfim, estamos organizados para nos próximos anos responder muitas perguntas, de forma organizada e integrada. O desafio é grande, mas ao mesmo tempo fascinante. Vamos usar técnicas diversas de coleta e análise de dados, muitos modelos complexos, mas também protocolos simples que valorizam a informação base e o conhecimento empírico. Estamos motivados e cheios de expectativas para que após os primeiros 4 anos, tenhamos respostas interessantes e novas perguntas intrigantes.
O Sistema Estuarino de Laguna merece esse PELD.
Vista do sistema lagunar. Fonte: Fábio Daura
Histórico da interação e esforços de Pesquisa
Por Paulo C. Simões-Lopes
Agora faremos uma viagem ao passado. Vamos direto ao final do século 19… De repente chegamos à beira de uma laguna com as margens repletas de junco. Pescadores tecem suas redes feitas de fibras vegetais ou de tripa de carneiro como se dizia para se referir aos tendões animais. O nylon ainda não havia sido inventado. À beira da laguna florescia uma cidade em estilo colonial. Tinha um mercado, um atracadouro, um jornal. Era a terra natal de Anita Garibaldi, a heroína de dois mundos. Era a antiga terra da etnia carijó. Mas então, uma dezena de anos antes da virada do século, o jornal da cidade publicou uma curiosa história de “botos que interagiam com pescadores”. Esse foi o primeiro registro de um evento que seria compreendido apenas cem anos depois.
Na década de 1970 a foz dos rios e lagoas do sul do Brasil seriam fixadas por molhes rochosos, facilitando a navegação. Os canais navegáveis seriam aprofundados, o nylon seria inventado, as tarrafas ficariam maiores e mais eficientes, no entanto, gerações de botos e pescadores-humanos continuariam sua relação de trocas e vantagens.
Os botos ganhariam nomes e seriam reconhecidos, individualmente, pelos pescadores, dando vida a uma tradição oral que segue até hoje. Botos e pescadores levando vantagens na captura de tainhas e algumas outras espécies de peixes. Em 1995 uma tese de doutorado premiada testaria as vantagens dessa relação e também suas fraquezas. Pela primeira vez ficaria claro que se tratava de vantagens bilaterais do tipo mutualista, como explica a ecologia: pescadores capturando mais peixes e peixes maiores que não podem ser vistos facilmente nas águas turvas da laguna; botos se valendo dos pescadores para desintegrar os cardumes. Cada um se valendo da presença do outro. Pela primeira vez se descreveria uma tradição cultural extra-humana para os botos de Laguna.
Isto pôde ser estudado contando e medindo peixes e mais peixes nas tarrafas, tirando milhares de fotografias de botos, contando os lances de redes, descrevendo comportamentos de botos e registrando cada um deles, entrevistando pescadores, seguindo os botos num pequeno bote com um motorzinho de 4hp e estimando a população de botos que usavam o sistema de lagoas do que foi um dia a localidade de Santo Antônio dos Anjos da Laguna ou simplesmente Laguna. A tecnologia daria novos saltos com a fotografia digital, com a fotogrametria, com os programas de edição de imagens, com a modelagem estatística moderna, com as redes complexas de relação entre cada boto. Então uma segunda tese de doutorado em 2011 revelou quem era quem. Quais botos mais interagiam com os pescadores e como se relacionavam entre si, revelou que a população de botos tinha se mantido estável por 30 anos e que estes botos ‘cooperativos’ necessitavam se deslocar menos para sobreviver ali.
As tradições humanas e artes de pesca seriam detalhadamente explicadas, a morte e o nascimento dos botos, minuciosamente acompanhados, sua complexa sonoplastia subaquática, os impactos humanos, a causa de morte desses animais, sua importância como “serviço ambiental”, a educação ambiental de alta qualidade, todos estudados em tantas monografias. Tanta gente dedicando horas a fio a contar, calcular, fotografar, gravar debaixo de chuva e sol e vento… (ver todas essas publicações científicas em https://www.lamaqufsc.com.br/artigos).
O Laboratório de Mamíferos Aquáticos (LAMAQ) da UFSC e o Departamento de Engenharia de Pesca da UDESC, cumprindo uma tradição de pesquisa que já tem seus bons 30 anos, agora abraça com sucesso um Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD). Agora mais braços e mentes se aliam num objetivo comum. Essa é a ciência que desejamos. Essa é a ciências que oferecemos!